quinta-feira, 23 de abril de 2020

Adão e Eva - Machado de Assis

Uma senhora de engenho, na Bahia, pelos anos de mil setecentos e tantos, tendo
algumas pessoas íntimas à mesa, anunciou a um dos convivas, grande lambareiro,
um certo doce particular. Ele quis logo saber o que era; a dona da casa chamoulhe curioso. Não foi preciso mais; daí a pouco estavam todos discutindo a
curiosidade, se era masculina ou feminina, e se a responsabilidade da perda do
paraíso devia caber a Eva ou a Adão. As senhoras diziam que a Adão, os homens
que a Eva, menos o juiz-de-fora, que não dizia nada, e Frei Bento, carmelita, que
interrogado pela dona da casa, D. Leonor:
— Eu, senhora minha, toco viola, respondeu sorrindo; e não mentia, porque era
insigne na viola e na harpa, não menos que na teologia.
Consultado, o juiz-de-fora respondeu que não havia matéria para opinião; porque
as coisas no paraíso terrestre passaram-se de modo diferente do que está contado
no primeiro livro do Pentateuco, que é apócrifo. Espanto geral, riso do carmelita
que conhecia o juiz-de-fora como um dos mais piedosos sujeitos da cidade, e
sabia que era também jovial e inventivo, e até amigo da pulha, uma vez que fosse
curial e delicada; nas coisas graves, era gravíssimo.
— Frei Bento, disse-lhe D. Leonor, faça calar o Sr. Veloso.
— Não o faço calar, acudiu o frade, porque sei que de sua boca há de sair tudo
com boa significação.
— Mas a Escritura... ia dizendo o mestre-de-campo João Barbosa.
— Deixemos em paz a Escritura, interrompeu o carmelita. Naturalmente, o Sr.
Veloso conhece outros livros...
— Conheço o autêntico, insistiu o juiz-de-fora, recebendo o prato de doce que D.
Leonor lhe oferecia, e estou pronto a dizer o que sei, se não mandam o contrário.
— Vá lá, diga.
— Aqui está como as coisas se passaram. Em primeiro lugar, não foi Deus que
criou o mundo, foi o Diabo...
— Cruz! exclamaram as senhoras.
— Não diga esse nome, pediu D. Leonor.
— Sim, parece que... ia intervindo frei Bento.
— Seja o Tinhoso. Foi o Tinhoso que criou o mundo; mas Deus, que lhe leu no
pensamento, deixou-lhe as mãos livres, cuidando somente de corrigir ou atenuar a
obra, a fim de que ao próprio mal não ficasse a desesperança da salvação ou do
benefício. E a ação divina mostrou-se logo porque, tendo o Tinhoso criado as
trevas, Deus criou a luz, e assim se fez o primeiro dia. No segundo dia, em que
foram criadas as águas, nasceram as tempestades e os furacões; mas as brisas da
tarde baixaram do pensamento divino. No terceiro dia foi feita a terra, e brotaram
dela os vegetais, mas só os vegetais sem fruto nem flor, os espinhosos, as ervas
que matam como a cicuta; Deus, porém, criou as árvores frutíferas e os vegetais
que nutrem ou encantam. E tendo o Tinhoso cavado abismos e cavernas na terra,
Deus fez o sol, a lua e as estrelas; tal foi a obra do quarto dia. No quinto foram
criados os animais da terra, da água e do ar. Chegamos ao sexto dia, e aqui peço
que redobrem de atenção.
Não era preciso pedi-lo; toda a mesa olhava para ele, curiosa.
Veloso continuou dizendo que no sexto dia foi criado o homem, e logo depois a
mulher; ambos belos, mas sem alma, que o Tinhoso não podia dar, e só com ruins
instintos. Deus infundiu-lhes a alma, com um sopro, e com outro os sentimentos
nobres, puros e grandes. Nem parou nisso a misericórdia divina; fez brotar um
jardim de delícias, e para ali os conduziu, investindo-os na posse de tudo. Um e
outro caíram aos pés do Senhor, derramando lágrimas de gratidão. "Vivereis
aqui", disse-lhes o Senhor, "e comereis de todos os frutos, menos o desta árvore,
que é a da ciência do Bem e do Mal”.
Adão e Eva ouviram submissos; e ficando sós, olharam um para o outro,
admirados; não pareciam os mesmos. Eva, antes que Deus lhe infundisse os bons
sentimentos, cogitava de armar um laço a Adão, e Adão tinha ímpetos de
espancá-la. Agora, porém, embebiam-se na contemplação um do outro, ou na
vista da natureza, que era esplêndida. Nunca até então viram ares tão puros, nem
águas tão frescas, nem flores tão lindas e cheirosas, nem o sol tinha para
nenhuma outra parte as mesmas torrentes de claridade. E dando as mãos
percorreram tudo, a rir muito, nos primeiros dias, porque até então não sabiam
rir. Não tinham a sensação do tempo. Não sentiam o peso da ociosidade; viviam
da contemplação. De tarde iam ver morrer o sol e nascer a lua, e contar as
estrelas, e raramente chegavam a mil, dava-lhes o sono e dormiam como dois
anjos.
Naturalmente, o Tinhoso ficou danado quando soube do caso. Não podia ir ao
paraíso, onde tudo lhe era avesso, nem chegaria a lutar com o Senhor; mas
ouvindo um rumor no chão entre folhas secas, olhou e viu que era a serpente.
Chamou-a alvoroçado.
— Vem cá, serpe, fel rasteiro, peçonha das peçonhas, queres tu ser a embaixatriz
de teu pai, para reaver as obras de teu pai?
A serpente fez com a cauda um gesto vago, que parecia afirmativo; mas o Tinhoso
deu-lhe a fala, e ela respondeu que sim, que iria onde ele a mandasse, — às
estrelas, se lhe desse as asas da águia — ao mar, se lhe confiasse o segredo de
respirar na água — ao fundo da terra, se lhe ensinasse o talento da formiga. E
falava a maligna, falava à toa, sem parar, contente e pródiga da língua; mas o
diabo interrompeu-a:
— Nada disso, nem ao ar, nem ao mar, nem à terra, mas tão-somente ao jardim
de delícias, onde estão vivendo Adão e Eva.
— Adão e Eva?
— Sim, Adão e Eva.
— Duas belas criaturas que vimos andar há tempos, altas e direitas como
palmeiras?
— Justamente.
— Oh! detesto-os. Adão e Eva? Não, não, manda-me a outro lugar. Detesto-os! Só
a vista deles faz-me padecer muito. Não hás de querer que lhes faça mal...
— É justamente para isso.
— Deveras? Então vou; farei tudo o que quiseres, meu senhor e pai. Anda, dize
depressa o que queres que faça. Que morda o calcanhar de Eva? Morderei...
— Não, interrompeu o Tinhoso. Quero justamente o contrário. Há no jardim uma
árvore, que é a da ciência do Bem e do Mal; eles não devem tocar nela, nem
comer-lhe os frutos. Vai, entra, enrosca-te na árvore, e quando um deles ali
passar, chama-o de mansinho, tira uma fruta e oferece-lhe, dizendo que é a mais
saborosa fruta do mundo; se te responder que não, tu insistirás, dizendo que é
bastante comê-la para conhecer o próprio segredo da vida. Vai, vai...
— Vou; mas não falarei a Adão, falarei a Eva. Vou, vou. Que é o próprio segredo
da vida, não?
— Sim, o próprio segredo da vida. Vai, serpe das minhas entranhas, flor do mal, e
se te saíres bem, juro que terás a melhor parte na criação, que é a parte humana,
porque terás muito calcanhar de Eva que morder, muito sangue de Adão em que
deitar o vírus do mal... Vai, vai, não te esqueças...
Esquecer? Já levava tudo de cor. Foi, penetrou no paraíso, rastejou até a árvore
do Bem e do Mal, enroscou-se e esperou. Eva apareceu daí a pouco, caminhando
sozinha, esbelta, com a segurança de uma rainha que sabe que ninguém lhe
arrancará a coroa. A serpente, mordida de inveja, ia chamar a peçonha à língua,
mas advertiu que estava ali às ordens do Tinhoso, e, com a voz de mel, chamoua. Eva estremeceu.
— Quem me chama?
— Sou eu, estou comendo desta fruta...
— Desgraçada, é a árvore do Bem e do Mal!
— Justamente. Conheço agora tudo, a origem das coisas e o enigma da vida.
Anda, come e terás um grande poder na terra.
— Não, pérfida!
— Néscia! Para que recusas o resplendor dos tempos? Escuta-me, faze o que te
digo, e serás legião, fundarás cidades, e chamar-te-ás Cleópatra, Dido,
Semíramis; darás heróis do teu ventre, e serás Cornélia; ouvirás a voz do céu, e
serás Débora; cantarás e serás Safo. E um dia, se Deus quiser descer à terra,
escolherá as tuas entranhas, e chamar-te-ás Maria de Nazaré. Que mais queres
tu? Realeza, poesia, divindade, tudo trocas por uma estulta obediência. Nem será
só isso. Toda a natureza te fará bela e mais bela. Cores das folhas verdes, cores
do céu azul, vivas ou pálidas, cores da noite, hão de refletir nos teus olhos. A
mesma noite, de porfia com o sol, virá brincar nos teus cabelos. Os filhos do teu
seio tecerão para ti as melhores vestiduras, comporão os mais finos aromas, e as
aves te darão as suas plumas, e a terra as suas flores, tudo, tudo, tudo...
Eva escutava impassível; Adão chegou, ouviu-os e confirmou a resposta de Eva;
nada valia a perda do paraíso, nem a ciência, nem o poder, nenhuma outra ilusão
da terra. Dizendo isto, deram as mãos um ao outro, e deixaram a serpente, que
saiu pressurosa para dar conta ao Tinhoso...
Deus, que ouvira tudo, disse a Gabriel:
— Vai, arcanjo meu, desce ao paraíso terrestre, onde vivem Adão e Eva, e trazeos para a eterna bem-aventurança, que mereceram pela repulsa às instigações do
Tinhoso.
E logo o arcanjo, pondo na cabeça o elmo de diamante, que rutila como um milhar
de sóis, rasgou instantaneamente os ares, chegou a Adão e Eva, e disse-lhes:
— Salve, Adão e Eva. Vinde comigo para o paraíso, que merecestes pela repulsa
às instigações do Tinhoso.
Um e outro, atônitos e confusos, curvaram o colo em sinal de obediência; então
Gabriel deu as mãos a ambos, e os três subiram até à estância eterna, onde
miríades de anjos os esperavam, cantando:
— Entrai, entrai. A terra que deixastes, fica entregue às obras do Tinhoso, aos
animais ferozes e maléficos, às plantas daninhas e peçonhentas, ao ar impuro, à
vida dos pântanos. Reinará nela a serpente que rasteja, babuja e morde,
nenhuma criatura igual a vós porá entre tanta abominação a nota da esperança e
da piedade.
E foi assim que Adão e Eva entraram no céu, ao som de todas as cítaras, que
uniam as suas notas em um hino aos dois egressos da criação...
... Tendo acabado de falar, o juiz-de-fora estendeu o prato a D. Leonor para que
lhe desse mais doce, enquanto os outros convivas olhavam uns para os outros,
embasbacados; em vez de explicação, ouviam uma narração enigmática, ou, pelo
menos, sem sentido aparente. D. Leonor foi a primeira que falou:
— Bem dizia eu que o Sr. Veloso estava logrando a gente. Não foi isso que lhe
pedimos, nem nada disso aconteceu, não é, Frei Bento?
— Lá o saberá o Sr. Juiz, respondeu o carmelita sorrindo.
E o juiz-de-fora, levando à boca uma colher de doce:
— Pensando bem, creio que nada disso aconteceu; mas também, D. Leonor, se
tivesse acontecido, não estaríamos aqui saboreando este doce, que está, na
verdade, uma coisa primorosa. É ainda aquela sua antiga doceira de Itapagipe?

A Balada de Mulan - Guo Maoqian

Click, click, e click, click, click
Junto à porta, Mulan tece,
Quando, de repente, a lançadeira cessa
Ouve-se um suspiro cheio de angústia
Oh, minha filha, quem está em sua mente?
Oh, minha filha, quem está em seu coração?
Não há ninguém em minha mente
Não há ninguém em meu coração
Mas noite passada li sobre a batalha
Eram doze pergaminhos
O Khan sorteará os que irão à guerra
O nome de meu pai está em todas as contas

Ah, meu pai não tem um filho crescido
Ah, Mulan não tem um irmão mais velho
Mas comprarei uma sela e um cavalo e me unirei ao exército no lugar de meu pai
No mercado do leste ela compra um corcel
No mercado d'oeste ela compra uma sela
No mercado do norte ela compra um longo chicote
No mercado do sul ela compra uma rédea

Na alvorada ela se despede da família
No crepúsculo ela se assenta à beira do Rio Amarelo
Ela não mais ouve seus pais a chamarem
Sobre seu travesseiro, as águas sussurram
No crepúsculo ela chega à Montanha Negra
Ela não mais ouve seus pais a chamarem, mas sim os gemidos dos cavalos tártaros nas montanhas de Yen

Ela cavalga milhares de quilômetros rumo à guerra que deve honrar
Ela atravessa altas montanhas como uma águia nas alturas
Das tempestades do norte, no frio que fustiga, ecoa o sino do guarda
A luz fria e azulada do gelo ilumina sua armadura
Generais morrem em cem batalhas
Nosso guerreiro está de volta
Dez anos voaram

Em seu retorno, ela é convocada a ver o Imperador
No palácio, ela recebe a mais alta honra
Ela é promovida ao mais alto cargo
O Imperador lhe concede centenas de milhares em prêmios
O Khan lhe pergunta qual é o seu desejo
Mulan não quer um cargo de Ministro
Mulan não quer nada de extravagante
Gostaria que me emprestassem um cavalo veloz que me leve de volta para casa

Quando o pai e a mãe ouvem que ela está chegando, vão esperar abraçados no portão
Quando a irmã mais velha a ouve chegando, ela corre ao seu quarto colocar um pouco de rouge
Quando o irmão mais novo a ouve chegando, ele afia seu punhal que brilha como a luz e vai preparar porco e carneiro para o jantar

Ah, deixem-me abrir a porta para o quarto do leste
Ah, deixem-me sentar em minha cama para um descanso poente
Então logo tiro a roupa do guerreiro e silenciosamente ponho meu antigo vestido
Junto à janela penteio meus cabelos
Em frente ao espelho pinto meu rosto
E quando saio para encontrar meus companheiros eles estão perplexos e impressionados


Por doze anos lutamos como camaradas
A Mulan que conhecemos não era uma mulher graciosa
Dizem que conhecemos uma lebre segurando-a pelas orelhas
Há sinais para distinguirmos
Suspenso no ar, o macho chutará e se debaterá, enquanto que as fêmeas ficarão paradas, com os olhos a lacrimejar
Mas se ambos estão no chão a pular em liberdade singela, quem será tão sábio para dizer se a lebre é ele ou ela?